A dicotomia entre a Justiça e a liberdade, por Flávio Pansieri

1 de junho de 2016


Para fazer uma análise sobre estado democrático nos dias atuais no Brasil e na América Latina, o jurista Flávio Pansieri, membro fundador e coordenador da pós-graduação em Direito Constitucional da ABDConst, fez uma ampla revisão histórica dos conceitos de Justiça e liberdade durante sua apresentação no XII Simpósio Nacional de Direito Eleitoral.

Ele traçou um panorama sobre os conceitos de liberdade através dos tempos, que começou com a liberdade no espaço público, na interioridade, num ser metafísico, e por fim novamente na racionalidade humana.  “É importante esta reflexão decorrente dos diversos momentos históricos que o pensamento ocidental apresentou para que possamos entender esta suposta dicotomia entre a justiça e a liberdade”, disse.

Segundo Pansieri, todos estes conceitos de liberdade e participação política que surgiram no decorrer dos tempo estão presentes em todos os debates que vemos hoje na televisão, no rádio, nos jornais –  talvez nos darmos conta que outrora já vivemos os mesmos dilemas e que esses referenciais muitas vezes não são suficientes para solucionar a complexidade do mundo em que vivemos.

“Eduardo Galeano disse que ‘perdemos muito tempo lutando hora por justiça versus liberdade, ora por liberdade face à igualdade e a justiça’, e corremos o sério risco neste momento histórico, em razão da complexidade da sociedade em que vivemos, de não termos mais nem justiça liberdade”.

De Platão ao liberalismo

Para chegar aos dias atuais, Pansieri relembrou reflexões de autores da filosofia sobre o conceito de liberdade na literatura ocidental.

“Não é possível imaginar a liberdade no pensamento ocidental sem liga-la a uma estrutura fundamental vinda da polis. Nesse período da polis grega o pensamento se dividia entre o público e o privado – e em especial entre o espaço público e aqueles que poderiam estabelecer os conceitos de liberdade entre os demais”. A certa altura, ressaltou, Platão, já desiludido com o conceito de uma república com participação de todos, após a morte de seu mentor Sócrates, pretendeu estabelecer uma perspectiva da liberdade calcada naqueles que seriam os mais aptos, mais capazes para coordenar o estado. “Portanto a liberdade que parte de Platão, e que possuía efetivamente uma subdivisão entre interioridade e exterioridade que se estabelecia na vida política, traz impulsos pouco democráticos, sem nenhuma a preocupação de atender a todos mas de possibilitar aos mais aptos dizer aos demais qual caminho seguir”.

Já em Aristóteles, prosseguiu o professor, chegamos a uma nova estrutura deste pensamento no que tange à ideia de exercício das liberdades e da cidadania. Para ele, importava também era estabelecer que alguns homens, os livres, pudessem se libertar de todas as obrigações para poder debater, na coletividade, os rumos de uma sociedade. Toda a ideia do conceito de liberdade estava depositada em algumas pessoas e conectada diretamente em a um espaço público.

Num momento seguinte, na derrocada da Grécia clássica, alguns pensadores deslocam este espaço de debate público para a interioridade humana. “Era uma nova perspectiva, a de que cada indivíduo, senhor de sua própria existência e capaz de conhecer a si mesmo sob todos as perspectivas, será capaz de vencer as suas paixões para efetivamente se dizer livre”. O autocontrole, então, era a centralidade dessa nova forma de pensar.

A transição do espaço público para a intimidade foi um importante fator para determinar na Idade Média a transcendência desta ideia da interioridade para um espaço superior, “onde transferimos a ideia de liberdade para um ser superior, supremo, metafísico, que escolhe seus principais atores para dizer o Direito à sociedade”, disse, lembrando pensadores como Tomás de Aquino e Martín Lutero.

Em seguida Pansieri fez a uma reflexão dos contratualistas, a partir do inglês Thomas Hobbes – pensador que via no seio da sociedade um potencial conflito, pois na busca de bens escassos os indivíduos se tornam inimigos e lutam pela eliminação mútua, e de John Locke, que refutou o absolutismo e instituiu que o estado fundado na supremacia da liberdade além de se preocupar com a manutenção da função judiciária seria a melhor estrutura para se viver.

“Se para Hobbes o abuso de liberdade constituía estado de guerra, para Locke se atinge a situação quando é dado a cada um o direito de julgar de acordo com sua própria conveniência e a sua lei, e de executar o castigo de acordo com o seu julgar e apropriado com a sua convicção.”

O palestrante citou ainda figuras importantes ainda como Jean-Jacques Russeau e Montesquieu, com destaque para Immanuel Kant – o filósofo que levantou a possibilidade de se liquefazer a liberdade no Direito, que é condição para a sobrevivência e a convivência dos homens.

Neste momento surgem diversos autores fundamentais para a construção do modelo em que vivemos hoje era a vez do pensamento liberal. “Foi a estrutura de estado que nos libertou do absolutismo”, sentenciou. “Foram os burgueses que de certo modo – se não na luta por direitos fundamentais, mas por direitos de algumas castas –, nos libertaram do jugo do absolutismo e nos trouxeram para uma realidade que tinha como fundamento a racionalidade humana.”

Paralelamente, instituía-se na União soviética um contraponto: “estado social”. “O pensamento social também tem um papel muito importante. A ideia era de que poderíamos ter um novo absolutismo e um novo ser supremo: o capital”.

No Brasil, um ‘Fla-Flu’ entre direita X esquerda

Esta dicotomia entre liberais e socialistas chegou ao Brasil, na opinião de Pansieri, de forma extremamente equivocada.

“A história brasileira contada para nós e vivida por muitos de nós nos permitiu compreender percepções míopes. Houve um momento em que colocaram todos os partidos que lutaram contra a ditadura militar como democratas. Depois pós-88, se conseguiu promover uma nova subdivisão na qual aqueles que ficaram fora do poder continuaram lutando contra uma ditadura, enquanto os que chegam ao poder entravam para uma espécie de ‘lado negro da força’, como se democráticos não fossem”, analisou. “A complexidade da sociedade brasileira não permite imaginarmos que vivemos como em um Fla-Flu; não permite mais imaginarmos que vivemos entre direita e esquerda como se esta fosse a divisão entre progressistas e conservadores”, continuou.

Ser um liberal pode significar ser um revolucionário, opiniou. “Ser liberal pode significar acreditar na liberação das drogas, na autonomia das mulheres para fazer aborto, acreditar que a descriminalização para uma série de condutas pode ser exatamente um caminho de transformação para uma nova sociedade. Ao mesmo tempo, estar ligado ao pensamento social não necessariamente levará a conclusões diversas a estas”.

Esta complexidade, na visão do jurista, é que precisa ser revista — mas não sob um manto ideológico que impede a compreensão ideal de Estado.

“Não precisamos de heróis”

No Ocidente, o pensamento sobre a liberdade no século XX trouxe um novo – que pretendeu estabelecer, a partir dos modelos pré-estabelecidos de estado,  garantir condições formais e estabelecer a liberdade está garantida a todos. Surgiram então as hipóteses de “melhor liberdade”.

“Fugindo desta dicotomia, prefiro compreender que a liberdade se estabelece no Brasil, a partir do conceito estabelecido pelo indiano Amartya Sem: será livre aquele que participa, aquele que possuir condição de agente – aquela possibilidade que terá qualquer indivíduo de participar e compreender sua posição”.

São 5 as liberdades fundamentais estabelecidas por Amartya Sem – todas elas, lembra Pansieri, previstas na Constituição de 1988:

– As liberdades políticas –  o direito de à participação e manifestação, de escolher e ser escolhido;

– As liberdades econômicas – o sujeito que não é possuir condições mínimas para estar inserido em uma sociedade, jamais poderá ser considerado livre;

– As oportunidades sociais – são fundamentais para eliminar as distorções e garantir serviços essenciais para o desenvolvimento humano como educação e saúde;

– Garantias de transparência – inibem a corrupção e a irresponsabilidade financeira;

– A segurança protetora – visa construir uma rede de proteção normativa que impeça o retrocesso social.

Sob este prisma, Pansieri encerrou fazendo uma análise do atual momento político brasileiro:

“Não é possível imaginar numa república democrática que quaisquer atores do Estado possam ser maiores do que a Constituição. Não é possível imaginar que instrumentos normativos possam servir de instrumentos medievais para se alcançar a verdade. Estamos falando também da participação do Legislativo que garanta as liberdades individuais como estrutura fundamental da democracia. Não precisamos de heróis. Até porque nossa democracia está além de outras repúblicas latino-americanas que têm em seus líderes supremos a estrutura fundamental de seu pensamento”.

“Não é possível imaginarmos qualquer estado apenas igual sem liberdade, nem um estado livre sem ser igual.  Seu propósito se encontra na busca constante de uma ordem mais igualitária, justa, mas sem romper com as estruturas democráticas para garantir a todos a ideia de igualdade ao nascer e liberdade ao viver”, finalizou.

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